Se você estiver interessado em entender o desastre que costuma ser – pelo menos no mundo civilizado – impor padrões morais por decreto, corra para acessar o documentário Prohibition, na Netflix (exibido originalmente em 2011 pela PBS).
As cinco horas do filme, divididas em três capítulos, trazem a assinatura talentosa de Ken Burns, diretor e roteirista da série Jazz(PBS, 2001, dez capítulos de duas horas). Na verdade, a chamada Era do Jazz e a Lei Seca quase que se sobrepõem perfeitamente e Ken Burns sente-se em casa naquela América trepidantemente devassa e ao mesmo tempo hipocritamente pudica das primeiras décadas do século XX.
O tema de Prohibition remete a cem anos atrás, quando a pressão das Ligas de Temperança, dos púlpitos das igrejas cristãs e dos políticos conservadores do Midwest, confluiu para o Congresso americano e conseguiu fazer aprovar, em dezembro de 1917, a proibição de venda e consumo de toda e qualquer bebida alcoólica em território dos Estados Unidos.
O embargo precisou de uma emenda constitucional, a Emenda 18 – pelo número dá para ver que emendar a Constituição era fato raro na história parlamentar do país. Era draconiana, a emenda. Interditava a “manufatura, venda, ou transporte de bebidas intoxicantes”, além de sua importação. Exigia dois terços dos votos na Câmara e no Senado e, enfim, passou. Mas tinha de ser ratificada em pelo menos 33 dos 48 estados da União.
Não foi difícil. Marchadeiras tomavam as ruas batendo bumbos e solfejando cânticos com ameaças aos hereges contrários ao banimento. Elas se postavam diante dos bares, constrangendo a entrada da clientela. Chegaram, em alguns casos, a invadir e depredar as prateleiras, com categóricas bengaladas. Por precaução, os donos de saloons trataram de aderir à causa.
O fator patriotismo, de repente, aflorou. Já que a quase totalidade das cervejas ostentava nomes alemães – Anheuser-Busch, Pabst, Stroh’s, Schell’s – e os Estados Unidos acabavam de entrar na guerra contra o Kaiser, bebericar um chopinho passou a ser entendido como militar a favor do inimigo Fritz (o clima era tão pesado que ninguém argumentou em favor do champanhe, o borbulhante néctar dos aliados franceses).
Outros interesses, sinceros ou escusos, entraram em campo. Entidades racistas como a Ku Klux Klan cerraram fileira com as piedosas Ligas de Temperança, porque consideravam que o álcool tornava mais resistente – e mais perigosa – a têmpera dos negros. O banimento os faria mais dóceis e resignados à própria sina.
Na verdade, os Estados Unidos e o álcool tinham uma íntima relação que recuava ao desembarque daqueles colonos que se chamavam ironicamente puritanos. De puritanos, no sentido atual, tinham muito pouco. O navio que trouxe até Massachusetts um dos mais notáveis deles, o advogado e político John Winthrop, carregava 10 mil galões de vinho e três vezes mais cerveja do que água potável.
Rum e uísque abasteciam a incomensurável sede da América. O alcoolismo era um problema social. O que explica que, no primeiro momento, setores progressistas sinceramente sensibilizados pelo drama tenham aceitado uma esquisita aliança com moralistas, xenófobos e racistas. Da mesma forma, é possível entender a adesão das sufragistas.
Elas buscavam, no movimento antiálcool, um canal de expressão contra a violência doméstica dos homens. Há momentos na História em que as pessoas se iludem com a ideia de que problemas sociais se resolvem com repressão e pancadaria. A verdade, no caso da Prohibition, iria progressivamente se impondo.
No dia 16 de janeiro de 1920, o Volstead Act – batizado com o sobrenome do presidente da Comissão de Justiça da Câmara, mas na verdade escrito pelo líder da Anti- -Saloon League, Wayne Wheeler – entrou em vigor, trombeteando que o drama do alcoolismo estava com os dias contados.
O problema, ao contrário, iria se amplificar dramaticamente. A clandestinidade faz rima fácil com a criminalidade. Não salvou quase ninguém do vício. Da Lei Seca não brotou a virtude; floresceu o pior gangsterismo. Gerou Al Capone e tantos outros.
A florescente vinicultura de Napa Valley, na Califórnia, nascida por inspiração de sobrenomes de origem meridionale e com aquela expertise ancestral dos terroirs do Piemonte, da Toscana e do Vêneto, tratara de se antecipar ao desastre, arrancando as uvas viníferas e as substituindo por árvores frutíferas. Às vésperas da Prohibition, os derradeiros estoques legais de vinho eram ofertados nas ruas de São Francisco à clientela sedenta e ainda confusa, por 1 dólar a garrafa.
A Prohibition seria a era da hipocrisia. Os norte-americanos – 105 milhões, era a população no pós-Guerra – nunca beberam tanto. Por baixo do pano, atrás do balcão, no speakeasy (bar clandestino) que surgiu em cada esquina.
“Mais de 1,5 mil agentes da lei, os crachás reluzindo, os revólveres azeitados e os dedos trêmulos sobre o gatilho estavam na ponta dos cascos, prontos para pular em cima do demônio da bebida, onde quer que ele aparecesse com sua horrenda caneca.” Assim um escritor descreveu “a gloriosa marcha” rumo “à grande transformação”, em seu marco zero. Virou piada. Nas destilarias clandestinas, os bootleggers (contrabandistas) multiplicavam os estoques. Para cada Elliot Ness cumpridor da lei, havia mil policiais corruptos.
Um exemplo familiar: o McSorley’s, de Nova York. Na Rua 7, ali onde o Bowery acaba e o Lower East Side começa, em Manhattan, ele ainda está lá, com seu assoalho coberto de serragem e teias de aranha dignas da Família Adams, para recordar, com gargalhadas estrepitosas, o que foi a Era do Ridículo. O McSorley’s existe desde 1854.
O mais antigo bar de Nova York, o clássico dos clássicos – aqueles botequins com jeitão tão esculachado que alguém, fatalmente, vai pensar: pelo menos a bebida deve ser ótima. E é. A bebida e aqueles Irish stews (cozidos) de levantar defunto no inverno. Lugar de antologia, tanto que até livro ele tem, escrito pelo gênio da revista The New Yorker, Joseph Mitchell.
Veio a Lei Seca, e o que fez o McSorley’s? Não fez nada. Quer dizer: eventualmente, tratou para que jamais faltasse algo de forte, vigoroso, recendendo ao Rio Liffey, de Dublin, nas canecas de sua clientela. Passou a destilar sua própria cerveja. Mas não precisou disfarçar, esconder, ocultar. A polícia de Nova York, encarregada de zelar pela Prohibition, era metade italiana, metade irlandesa. Onde é que os policiais irlandeses haveriam de matar a compreensível sede senão no familiar aconchego do McSorley’s?
E assim, enquanto policiais fardados continuavam encenando a repetida cena em que barris de bebida eram rasgados a machadadas, sob o aplauso das câmeras oficiais, policiais à paisana vigiavam para que os carregamentos clandestinos – muitos deles procedentes da rota do Canadá – chegassem ao seu destino.
Senão, o que teriam sido o Algonquin e sua lendária Round Table? No bar do hotel da Rua 44, alguém ainda há de ouvir hoje as gargalhadas de Dorothy Parker, as provocações de Edmund Wilson e o espreguiçar do gato de estimação. O Algonquin era o que um bar literário tem de ser.
Discreto, aconchegante, protegido pelo atlético concièrge Michael Lyons, o perfeito ponto de encontro para o crème de la crème daquela intelligentsia que se revezava entre a Broadway e a revista The New Yorker, ali vizinhas. A legendária Mesa Redonda está lá, ao lado do piano, e olhando-a hoje você se pergunta como é que cabia naquela coisinha tanto talento de palco e de pena.
A Mesa passou a funcionar a partir de 1919 e 1920 e suas estocadas de ironia, picardia e inteligência perenizaram o carisma do Vicious Circle (Círculo do Vício), cuja audiência gravitava em torno de Dorothy Rothschild, aliás, Dorothy Parker, ex-professora de piano, poeta e agora cronista da Vanity Fair. Seu humor era uma adaga abastecida a gim – que nunca lhe faltou. Certo dia, vieram lhe contar que o presidente Calvin Coolidge tinha morrido. “Mas como é que perceberam?”, fuzilou ela.
Ms. Parker era bonita, talentosa e disponível. Equilibrou, com apetite, seu amor por homens e drinques. Os coquetéis do Algonquin citam atualmente, no guardanapo, uma frase dela: “Amo um martini – no máximo, dois. Com três, eu já estou debaixo da mesa. Com quatro, estou debaixo do anfitrião”.
Enquanto a mortandade das guerras entre as gangues ensanguentava as ruas das metrópoles, em Chicago, Nova York, Detroit e Miami o suprimento de bebida não era incomodado mesmo em localidades menores, mais inclinadas ao banimento e onde a lei podia ser mais facilmente vigiada.
O J-Bar, do Hotel Jerome, em Aspen, resort de esqui do Colorado, foi um dos que sobreviveram à Prohibition, com uma marota piscadela para a freguesia. Quando a patrulha do álcool baixou, em 1920, virou lanchonete. Servia refrigerantes e um delicioso milk-shake. Mas, se o cliente pedia Aspen Crud (crud, para substância repelente), o balconista tratava de despejar no milk-shake doses e doses de bourbon. Drinque de fato nauseabundo, mas, naquelas condições, o que fazer?
Os recalques provincianos e as injunções eleitorais pareciam indicar que o Volstead Act seria para sempre. Em vão, proeminentes figuras da oposição democrata tinham aderido à militância anti-Prohibition, a começar por Alfred Al Smith, por quatro mandatos governador de Nova York e candidato à Casa Branca em 1928, e John J. Jacob, presidente do partido. Mas o voto conservador predominou e Herbert Hoover foi eleito.
O milionário Jacob, para curar a ressaca eleitoral, encomendou a seu bootlegger 14 caixas de gim, sete de scotch e três de rum. Um comentarista escreveu que o católico Smith foi derrotado pelos três Ps: Prohibition, Preconceito e Prosperidade. Pelo menos a prosperidade estava com seus dias contados.
A virada na queda de braço entre os dry (secos, pró-Prohibition) e os wet (molhados, contra) começou a acontecer por culpa de uma tragédia: o crack da Bolsa de Nova York, em outubro 1929. Logo os congressistas democratas passaram a acusar os republicanos pela débâcle nacional e argumentar que eles governaram a bordo de ninharias, como a repressão ao drinque, sem atentar para os fundamentos básicos da política, da economia e da cidadania.
Reativar a indústria de bebidas – a quinta do país, quando foi proscrita – seria uma extraordinária fonte de receita para aliviar os efeitos da Depressão. O lobby político da brigada wet foi acionado e a base republicana fraquejou. Mas, assim como a Prohibition só existiu por força da mobilização feminina, ela só iria desaparecer quando as mulheres tomaram a iniciativa de desafiá-la.
Pauline Morton Sabin era bela, rica, energética e dona de uma aristocrática elegância – nada a ver com o perfil boêmio e indisciplinado dos ridicularizados adeptos do álcool. Chegou a ser do Comitê Nacional do Partido Republicano. Apoiou Hoover na eleição de 1928, contra Al Smith, embora alguns meses antes já tivesse proclamado sua conversão às fileiras dos que defendiam o fim do banimento.
O discurso de posse de Hoover foi a gota-d’água. Pauline renunciou ao cargo no partido e foi à luta. A palavra de ordem era repeal – derrotar o Volstead Act seria mais factível do que aprovar uma emenda constitucional que neutralizasse a de nº 18. Várias organizações brotaram. Nenhuma com a legitimidade carismática e efetiva da WONPR (em português, Organização das Mulheres para a Reforma Nacional da Prohibition), de Pauline Sabin.
No dia em que a Lei Seca caiu, o escritor H. L. Mencken, um de seus mais sarcásticos adversários, tratou de comemorar. Foi a um dos saloons inebriados de euforia e pediu a única coisa que não tinha bebido ao longo dos 13 anos de Prohibition: brindou a liberdade readquirida com um puríssimo copo d’água.
FONTE: CARTACAPITAL