sábado, 5 de agosto de 2017

SOB O RISCO DA DESPROTEÇÃO SOCIAL: A REFORMA DA PREVIDÊNCIA E SEUS IMPACTOS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL

Com o objetivo declarado de “fortalecer a sustentabilidade do sistema de seguridade social”, em dezembro de 2016 o governo apresentou ao Congresso Nacional Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que visa alterar as atuais regras sobre benefícios previdenciários e assistenciais. De fato, a PEC, que recebeu o número 287/2016 ao iniciar a sua tramitação na Câmara dos Deputados, propõe mudanças profundas na organização da seguridade social brasileira. Mas as alterações propostas ultrapassam em muito preocupações relacionadas à sustentabilidade. Elas pretender reformular em substancia a organização atual da previdência social, com impactos diretos e indiretos na configuração da política nacional de assistência social.
De forma direta, a PEC no. 287/206 propõe mudanças significativas nas regras referentes ao acesso e ao valor do Benefício de Prestação Continuada (BPC), com repercussões nas condições de vida de seus beneficiários, submetidos a uma dupla condição de grave vulnerabilidade: situação de miséria e idade avançada e/ou presença de uma deficiência física ou mental. Tanto a redação originária do governo como a apresentada pelo relator da matéria, serão analisadas na primeira seção do artigo.
De forma indireta, mas não menos importante, as mudanças propostas pela PEC 287/2016 nas regras de acesso à previdência social também sinalizam com modificações relevantes na política pública de assistência social com a ampliação da exclusão previdenciária. Estimativas vêm calculando que cerca de 35% trabalhadores urbanos não poderiam cumprir novas regras de tempo de contribuição, caso estas sejam aprovadas. O fim do regime especial de previdência para o trabalhador rural e a transferência destes trabalhadores para o regime contributivo típico do mundo urbano provocaria igualmente expressivos índices de desproteção previdenciária. Além do impacto sobre o tecido social, o artigo também sugere que haverá impacto sobre o tecido econômico local, resultante da provável queda das transferências previdenciárias e assistenciais. Tais transferências tem grande importância para os municípios brasileiros representando, atualmente, recursos seis vezes maiores do que o volume enviado pelo Fundo de Participação dos Municípios.  Ambos os aspectos serão analisados na segunda seção deste artigo.

  • Possíveis mudanças no BPC e seus impactos
O Benefício de Prestação Continuada (BPC) constitui um dos mais importantes mecanismos de proteção social no Brasil. Ele garante uma renda mensal de cidadania no valor de um salário mínimo aos idosos (65 anos ou mais) e às pessoas com deficiência (PcD) que vivem em situação de extrema pobreza, definida pela renda familiar per capita inferior a um quarto de salário mínimo. Em dezembro de 2016, 4,4 milhões de pessoas nessas condições foram beneficiadas pelo BPC. A implementação do benefício, nas últimas décadas, tem aportado expressiva contribuição para o enfrentamento da pobreza e para a redução das desigualdades, como vem sendo mostrado por diversos estudos. E tais impactos positivos são decorrentes principalmente de duas características: i) o fato de o benefício alcançar os estratos mais pobres da população; e ii) o valor de um salário mínimo, suficiente para retirar da indigência e da pobreza a grande maioria dos beneficiários (Soares et al, 2006; Soares, Ribas e Soares, 2009; Medeiros, Melchior e Granja, 2009).
A atual configuração do BPC, no entanto, é objeto de proposta de alterações no bojo da reforma previdenciária. A inclusão do BPC na reforma proposta foi justificada pelo governo, na Exposição de Motivos da PEC, pelo fato de que as regras atuais do BPC operariam com “incentivos inadequados”. Esses incentivos consistiriam tanto na igualdade entre a idade mínima para acesso ao BPC e à aposentadoria por idade (no caso dos homens) quanto na igualdade entre o valor do BPC e o do piso do benefício previdenciário. A dupla igualdade incentivaria a “migração” do sistema previdenciário, que exige contribuição, para o assistencial, desequilibrando a seguridade social. Visando evitar estes supostos impactos negativos do BPC, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no 287/2016 propõe duas alterações nesse benefício: i) aumento para a idade mínima de acesso ao BPC de 65 anos para 70 anos; e ii) desvinculação do valor do benefício assistencial do salário mínimo, de modo a permitir sua posterior redução.
Em seu relatório, apresentado no dia 19 de abril à Comissão Especial da Câmara dos Deputados, o relator da PEC 287/2016, deputado Artur Maia, propõe mudanças no texto. No caso do BPC, é prevista a sua extinção, e em seu lugar fica criada uma “transferência de renda para pessoas com deficiência” e uma “transferência de renda para idosos”, ambas no valor de um salário mínimo. Propõe ainda o relator que a idade mínima de acesso ao BPC seja de 68 anos, reconhecendo assim seu suposto efeito como “incentivo inadequado”. Vamos analisa-lo mais de perto.
Os formuladores da proposta do governo entendem que os trabalhadores brasileiros deixariam de aportar contribuição ao sistema previdenciário devido tanto à existência do BPC em valor igual ao dos benefícios de base da Previdência Social, como à coincidência da idade de acesso. O relator Artur Maia parece reconhecer apenas um efeito negativo na coincidência de idades. Contudo, diferenças significativas entre a proteção previdenciária e aquela proporcionada pelo benefício de prestação continuada devem ser levadas em consideração. A proteção previdenciária ocorre ao longo de toda a vida laboral do trabalhador e alcança a sua família. Parece, pois, pouco efetivo que o trabalhador prefira abrir mão desta proteção por uma possibilidade de acesso ao benefício assistencial que se efetuará somente na velhice. Além disso, o acesso futuro ao BPC não é uma certeza, mas uma possibilidade cuja efetivação depende de um nível de renda familiar em patamares de miserabilidade.
Cabe ainda destacar outro aspecto desta questão. Quando se analisa o perfil dos trabalhadores não filiados à Previdência Social e potenciais demandantes do BPC, não há evidências de que a desfiliação previdenciária dos trabalhadores de baixa renda seja uma escolha. Ao contrário, diversos estudos sugerem que essa condição reflete sobretudo precárias condições de inserção laboral (Leichsenring, 2010; Guimarães, Constanzi e Ansiliero, 2013). Parcela expressiva dos trabalhadores desprotegidos (não contribuintes) possui renda domiciliar per capita insuficiente para se vincular às políticas contributivas da Previdência Social. Para estes, e especialmente para os trabalhadores do setor informal, um fator determinante da não inclusão previdenciária está na insuficiência de rendimentos.
Outro aspecto relevante se refere à expectativa de vida dos segmentos mais empobrecidos da população. Estimativa realizada, tendo por base informações dos registros administrativos da Previdência Social, indicam diferenças significativas na expectativa de sobrevida dos beneficiários do BPC em relação àquela considerada pela proposta de reforma. Tais dados sugerem que a expectativa de sobrevida dos idosos mais pobres é bem inferior (7,9 anos) comparada àquela expectativa de sobrevida da totalidade das pessoas com 66 anos estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (17,6 anos). Portanto, para discutir a elevação da idade mínima do BPC, há a necessidade de considerar não apenas a expectativa de sobrevida dos idosos de forma geral, mas ponderar igualmente seu valor em decorrência das diversas condições socioeconômicas da população.
Cabe ainda destacar que caso ocorra a mudança da idade mínima de 65 para 70 anos, estima-se que 28% dos beneficiários que receberiam o BPC Idoso segundo as regras atuais estariam fora desse sistema de proteção por ter idade entre 65 e 69 anos. Considerando apenas as mudanças demográficas previstas pelo IBGE, 1,1 milhão terão idade entre 65 e 69 anos em 2036, e serão excluídos desse importante mecanismo de proteção contra a extrema vulnerabilidade social. Caso o limite de idade seja de 68 anos, a exclusão alcançaria cerca de 700 mil idosos.
Pesquisa realizada entre os beneficiários do BPC demonstrou a grande relevância do valor desse benefício: em média, a renda proveniente do BPC representa 79% do orçamento dessas famílias, e em 47% dos casos, ela é a única renda da família (Brasil, 2010). Esses dados sugerem a relevância da renda proveniente do BPC no orçamento familiar de idosos e pessoas com deficiência beneficiários e, portanto, a iminência de seu retorno à miséria diante da proposta de redução do valor do benefício. Assim, caso retorne para votação no Congresso a proposta de desvinculação do valor do BPC frente ao salário mínimo, haverá substancial aumento da pobreza em um público em situação peculiar de vulnerabilidade: famílias que possuem pessoas com deficiência e/ou idosos e cujos rendimentos, já mínimos, são afetados tanto pela ampliação de gastos como pela menor capacidade de obter renda no mercado de trabalho (Silveira et al, 2016).

  • Mudanças no regime previdenciário e seus impactos no SUAS
Importantes efeitos da reforma previdenciária também serão observados na fragilização do tecido social e econômico dos municípios brasileiros, com consequências importantes para a política de assistência social.  Duas regras propostas pela PEC 287/2016 teriam particular impacto: o aumento do tempo mínimo de contribuição, que passaria dos atuais 15 para 25 anos, e a extinção do regime especial de aposentadoria rural.
O aumento do tempo mínimo de contribuição para 25 anos será acompanhado por expressivo incremento da exclusão previdenciária. Estudo que teve como base os microdados do INSS sobre concessão do RGPS urbano em 2014, observou que 40,6% das aposentadorias concedidas naquele ano foram para trabalhadores que se aposentaram por idade (60 anos mulheres e 65 anos homens), tendo contribuído em média 19,3 anos – realidade distante dos 25 anos de contribuição proposto pela PEC 287 (Mostafa e Theodoro, 2017). Segundo o estudo, cerca de 35% dos trabalhadores urbanos que se aposentaram em 2014 não se aposentariam sob a nova regra de tempo mínimo de contribuição. O percentual de exclusão previdenciária alcançaria 26,6% para os homens e 56,2% para as mulheres (44,4% caso elas viessem a trabalhar mais 5 anos, no caso de aprovada a idade mínima de 65 anos também para as mulheres, e a contribuir durante todo este período para a Previdência Social), sendo estes os trabalhadores menor escolarizados e inseridos de forma mais precária no mercado de trabalho.
Se uma maior exigência de contribuições é pouco compatível com as características do mercado de trabalho urbano brasileiro, marcado por altas taxas de informalidade, rotatividade e desemprego, é ainda mais desacorde face à dinâmica do trabalho rural em regime de economia familiar. As alterações das regras do regime rural de previdência social como proposto pela PEC 287/2016 são muito significativas. Na proposta original do governo para este público, a alteração envolvia: (i) a equiparação da idade mínima para aposentadoria aos 65 anos, ou seja, a idade mínima para mulheres agricultoras aumentaria em 10 anos, e para os homens agricultores, em 5 anos; e (ii) fim da contribuição por percentual da produção com exigência de contribuição individual e mensal do trabalhador rural segurado especial por 25 anos. O relator da reforma na Câmara dos Deputados propôs uma redução nestes critérios: contribuição individual mínima de 15 anos e as idades mínimas de 60 anos para o homem e 57 anos para a mulher.
Contudo, sabendo-se que a metade da população rural mantem uma renda domiciliar per capita menor do que meio salário mínimo (Valadares e Galiza, 2016), pode-se avaliar a baixa capacidade contributiva do grupo de pequenos produtores agrícolas. A exigência de contribuição individual e mensal do segurado especial inviabilizará o acesso à renda de aposentadoria de um contingente expressivo, estimado entre 60 e 80% dos atuais segurados segundo a CONTAG. Com a redução da cobertura previdenciária dos trabalhadores de menor escolaridade e com inserção mais precária no mundo do trabalho urbano e rural, projeta-se um empobrecimento da população idosa assim como uma ampliação da vulnerabilidade das famílias com idosos. O impacto será expressivo tanto no aumento da demanda por benefícios assistenciais como sobre todo o conjunto de serviços ofertados pelo Sistema Único de Assistência Social.
Além do impacto social para os beneficiários e suas familias, a reforma da previdência terá efeitos negativos de grande importância no tecido social e econômico dos municípios brasileiros. Sabemos que o volume total das transferências constitucionais recebidas pelos municípios pelo Fundo de Participação dos Municípios (FPM) somou, em 2016, cerca de R$ 79,9 bilhões. Para se ter uma ideia da magnitude das transferências sociais na dinamização das economias locais, em 2016 chegaram aos municípios brasileiros R$ 47 bilhões por meio do BPC, ou seja, o equivalente a 60% dos recursos do FPM. Somados os recursos do BPC aos recursos transferidos às famílias pelo Regime Geral da Previdência Social, urbano e rural, o volume das transferências sociais federais alcançou R$ 485 bilhões, superando em seis vezes o volume de recursos que chega aos municípios brasileiros pela via do FPM.
A estimativa de exclusão previdenciária projeta uma gradativa e importante redução destas transferências, com impactos econômicos e sociais relevantes para todos os municípios brasileiros, em que pese a existência de importantes diferenças regionais. O RGPS rural é a principal transferência social do Nordeste e Norte, representando, respectivamente, 43% e 41% do total de benefícios sociais (previdenciários e assistenciais) pagos. A proposta de fim do regime especial para trabalhadores em economia familiar terá, assim, profundo impacto nestas regiões, em especial nos seus pequenos municípios. No Sudeste, onde a principal transferência social é a do RGPS urbano, este representa, sozinho, 8,3 vezes o total das transferências do FPM para a região. Ali, o principal impacto negativo será decorrente da exclusão prevista dos trabalhadores informais e de baixa renda. Na região sul, o RGPS urbano representa 4,7 vezes o total das transferências do FPM. Somando o RGPS rural, a Previdência Social transferiu para a região Sul cerca de 5,4 vezes o que transferiu o FPM. ​
Conclui-se, pois, que a reforma proposta pela PEC 287/2016 sinaliza com o aumento da exclusão previdenciária e o acesso mais restrito ao BPC, comprometendo a organização da seguridade social, com impactos profundos para segmentos populacionais e para os municípios brasileiros, e sinalizando para o reforço das iniquidades e a ampliação da vulnerabilidade e das desigualdades sociais e regionais no país.


FONTE: PLATAFORMA POLÍTICA SOCIAL

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