O Cenário de Construção da Improbidade Administrativa
Autonomia constitucional e definição de improbidade administrativa
Autonomia constitucional e definição de improbidade administrativa
Costumeiramente se assevera, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, que são
três as instâncias de responsabilidade jurídica contempladas na Constituição Federal e no
ordenamento jurídico em geral: civil, criminal e administrativa.
A responsabilidade civil, clássica por sua origem junto à formação do próprio
Direito, serve-nos ainda, a despeito de suas particularidades por se referir a situações
jurídicas de direito privado, enquanto teoria geral de responsabilidade ao decompor os
elementos que devem ser considerados em qualquer situação jurídica que envolva a
possibilidade de responsabilização de um sujeito: comportamento (objetivo ou subjetivo,
e nesta hipótese, por dolo ou culpa), nexo causal e dano.
A responsabilidade criminal erige-se com o Direito Penal e reconhece-se nela uma
estrutura metodológica independente na qual se enfatiza a tipicidade dos comportamentos
que podem levar às penas, e muitas destas aptas a cercear um dos bens mais caros ao ser
humano, a liberdade.
A responsabilidade administrativa refere-se às situações jurídico-administrativas,
é dizer, vínculos entre o cidadão e o Estado, ora em relação de sujeição geral (todos e
quaisquer cidadãos encontram-se indistinta e potencialmente submetidos à situação
jurídica disciplinada em lei, a exemplo do Código de Trânsito Brasileiro e de suas regras
sobre a condução de veículos com as respectivas infrações e consequentes sanções
administrativas), ora em relação de sujeição especial (vínculos nos quais apenas alguns
cidadãos submetem-se, espontânea ou forçosamente, a exemplo do estatuto jurídico de
certa categoria de servidores públicos, ou o regimento interno de uma universidade pública, ou de um hospital público ou mesmo as normas que regem a rotina dentro de
uma unidade prisional).
Correlato então ao tema da responsabilidade jurídica e às suas espécies é o Direito
Sancionador, isto é, a sistematização de conceitos, institutos, categorias, de um regime
jurídico próprio de estipulação das infrações (tipos infracionais) e respectivas sanções
(penas).
No Direito Privado em geral (Direito Civil, Código de Defesa do Consumidor e
outros diplomas) perquire-se, por exemplo, se o dano moral tem natureza jurídica de
“pena”, quais são os limites possíveis, no âmbito da responsabilidade contratual, à
previsão (tipificação) de infrações contratuais etc.Igualmente no Direito Penal,
desenvolvem-se elaboradas teorias sobre a descrição de fatos-tipos e as consequentes
sanções.
No Direito Administrativo, por sua vez, há alguns anos assomou-se o Direito
Sancionador num capítulo independente de modo a ser possível melhor compreendê-lo e
sistematizá-lo nas relações de direito público e, não obstante alguma pontual divergência
existente, a doutrina em geral sustenta que um elemento indispensável à qualificação de
infrações e sanções administrativas remete-se ao sujeito que age, a Administração
Pública. Em outros termos, trata-se de infrações e sanções administrativas se é a própria
Administração Pública no exercício de função administrativa quem atua.
Neste contexto se percebe alguma aparente dificuldade em se identificar qual área
do Direito deve-se ajustar – logo, assimilar-se ao regime jurídico – a responsabilidade do
agente público que comete atos de improbidade administrativa.
Pois se evidencia a inadequação de dizer-se que poderia ser a responsabilidade
civil na medida em que a pessoa a eventualmente ser responsabilizada não age em nome
próprio, não se encontra numa relação entre particulares, mas atua em cumprimento de
uma missão pública porque é investido em competências previstas em lei à satisfação do
interesse público.
Do mesmo modo, seria inapropriado se indistintamente fosse aplicado o Direito
Penal a situações que não encontram compatibilidade com a descrição de crimes. Em
exemplo a esclarecer o que se afirma considere-se que não há qualquer semelhança na
descrição dos fatos-tipos de improbidade em comparação com os tipos penais.
Por último, há dificuldade de simplesmente afirmar que a responsabilidade por
improbidade administrativa é mera categoria jurídica do Direito Administrativo
Sancionador porque, como acima foi adiantado, reconhece-se por infração e sanção
administrativa aquelas que são apuradas e aplicadas no exercício de função
administrativa, e não, tal como ocorre com a improbidade administrativa, em processo
judicial.
Mas o desconforto inicial na própria alocação da teoria da improbidade
administrativa (se responsabilidade civil, criminal ou administrativa) remete-nos além
das assertivas tradicionais sobre as três instâncias de responsabilidade jurídica de modo a
fazer perceber que a inequívoca matriz das esferas de responsabilização não pode ser
outra a não ser a própria Constituição Federal de 1988. Dela partimos para realçar que
entendemos que na contemporaneidade, diante então da realidade jurídico-positiva que
se apresenta em nosso País, é insuficiente a reprodução da clássica divisão em três das
responsabilidades jurídico-constitucionais.
Isto porque a responsabilidade por improbidade administrativa, em leitura tópica
e sistemática da Constituição Federal, encontra sua própria autonomia.
Neste sentido, na doutrina, José Roberto Pimenta Oliveira expressamente
defende que a improbidade administrativa enquanto esfera de responsabilidade jurídica
apresenta inequívoca autonomia constitucional, o que em tudo se reflete na forma de
tratamento do tema ao se aplicar a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), a Lei n°
8.429/92.
Considerem-se alguns exemplos: a) a tipificação dos atos de improbidade
administrativa não ocorre nos moldes do Direito Penal, pois a estrita tipicidade exigida (a
descrição minudente do fato apto a qualificar-se como tipo penal) não poderia sequer ser
logicamente exigível diante de tão múltiplas e diversificadas formas de expressar-se a
função administrativa. Portanto, apesar de críticas que são feitas, e não podem ser
desprezadas, a respeito do excesso de abertura e da ambiguidade de alguns atos de
improbidade administrativa, de todo modo não seria correto exigir que houvesse, a
exemplo do crime, o mesmo detalhamento do comportamento fático passível de
tipicidade; b) na dosimetria da pena a sua individualização, direito fundamental previsto no art. 5º, XLVI, da Constituição Federal, deve ainda reputar que o sujeito agiu, ao
cometer a improbidade administrativa, investido em função pública, ou seja, enquanto
alguém a quem foram confiados deveres e poderes para bem cumprir com os interesses
da coletividade, e não os seus particulares; c) na condução do processo judicial que apura
a eventual ocorrência de atos de improbidade administrativa, não obstante a indispensável
aferição dos elementos subjetivos (dolo e culpa – esta última quando admitida pelo tipo
infracional, o que ocorre com o art. 10 da Lei 8.429/92), a identificação do ilícito
administrativo em si, em particular do desvio de finalidade, afere-se objetivamente, pois
o descompasso da prática do ato é conclusão que se encontra por sua desconformidade
não com o móvel íntimo do sujeito, mas com o que o ordenamento jurídico dispõe
enquanto comportamento exigido.
Mas além dos breves exemplos mencionados, e de volta à autonomia da
improbidade administrativa enquanto esfera própria de responsabilidade constitucional –
ao lado, e não dentro das demais instâncias de responsabilidade –, este pressuposto do
qual partimos considera, como acima adiantamos, a própria Constituição Federal
enquanto matriz das responsabilidades jurídicas.
Na Constituição Federal de 1988 a expressão improbidade administrativa
aparece, no corpo do texto principal (sem considerar o Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias), duas vezes.
A primeira vez no art. 15 que dispõe sobre a cassação de direitos políticos cuja
perda ou suspensão pode dar-se, nos termos do inciso V, por prática de ato de improbidade
administrativa. A segunda, e mais importante, por ser realmente a norma da qual se erige
esta esfera de responsabilização, encontra-se no art. 37, § 4º, ao dispor que “Os atos de
improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da
função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e
gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.
Por evidente, a autonomia constitucional da responsabilidade por improbidade
administrativa não se encerra nesses artigos, mas deles se inicia, edifica-se, em leitura
tópica e sistemática da Constituição Federal.
Primeiro, em razão do art. 1º da Constituição Federal, texto normativo que anuncia
os princípios fundamentais, de pronto afirmar ser o Brasil uma República. Pois ao se
assegurar o princípio republicano enquanto fundamento do sistema constitucional enfatiza-se a res publica, isto é, que o agir em exercício de função pública é uma atuação
em nome da sociedade – e não por interesse pessoal –, o que por consequência significa
dizer que há ao menos três deveres que se imbricam ao exercício de qualquer missão
pública, seja na condição de agente ou mesmo de particular em parceria com o Estado,
três deveres que naturalmente decorrem do princípio republicano:
a) Transparência: se há poderes públicos enfeixados em cargos ou empregos
públicos, ou delegados a particulares que se tornam colaboradores e parceiros do Estado,
de toda sorte são instrumentos conferidos a quem investido na função para a realização
do interesse da sociedade, e se há recursos públicos (capital, empréstimo de bens, cessão
de servidores públicos) então é preciso esclarecer de que modo são utilizados.
b) Prestação de contas: se qualquer conduta no âmbito da função pública
representa, em última análise, um agir em nome da sociedade, então se deve dizer o que
se fez, de qual modo e para qual fim. Um corolário da própria transparência, então, pois
ao se tornarem efetivamente públicas as atividades que envolvem recursos do Estado o
escopo não poderia ser outro senão as contas serem expostas à sociedade.
c) Responsabilidade: a transparência e a prestação de contas têm por mote a
titularidade do poder, e o povo é o seu soberano titular (art. 1º, parágrafo único, da
Constituição Federal), então se deve responder pela eventual violação da confiança que
foi depositada e não correspondida.
O princípio republicano então se difunde para concretizar-se em particular direito
fundamental do cidadão de exigir a proteção, por ação popular, contra a prática de ato
lesivo ao patrimônio público, o que nele se devem compreender os patrimônios moral,
histórico, cultural e ainda o meio ambiente (art. 5º, LXXIII).
E ainda o princípio republicano orienta a hermenêutica constitucional junto aos
princípios que fundam o regime jurídico-administrativo no art. 37, caput, da Constituição
Federal ao se imporem legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência
na condição de normas estruturantes à realização do interesse público.
Por estas razões, não é tanto pela expressão “improbidade administrativa” no texto
constitucional (art. 15, V, e art. 37, § 4º), mas antes e principalmente por ser a
responsabilidade uma das facetas do princípio republicano (art. 1º, caput), pressuposto
fundador do nosso Estado Democrático e Social de Direito, eixo metodológico do próprio
regime jurídico-administrativo (art. 37), que na atualidade, em pleno século XXI e em análise da realidade posta em nossa ordem jurídica, entendemos ter a improbidade
administrativa verdadeira autonomia constitucional enquanto instância de
responsabilidade.
A definição de improbidade administrativa deve então partir destas considerações.
De acordo com o dicionário de vocabulário jurídico de De Plácido e Silva, probo
e probidade advêm do latim probus, probitas: o que é reto, leal, justo, honesto, mas se
refere também à maneira criteriosa de proceder . Derivado de improbitas significa
também má qualidade, imoralidade, malícia, desonestidade, má fama, incorreção, má
conduta, má índole, mau caráter. Ímprobo, ainda segundo este dicionário, é o mau,
perverso, corrupto, devasso, desonesto, falso, enganador . Do dicionário etimológico da
língua portuguesa de Antônio Geraldo da Cunha probo refere-se a quem apresenta caráter
íntegro, o que significa dizer, em sentido inverso, que ímprobo é quem falta com a
integridade. Neste sentido, Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves destacam ainda
uma origem mais remota: probus quer dizer o que brota bem (pro+bho – da raiz bhu,
nascer, brotar).
Portanto, “probidade” significa, inicialmente, o comportamento honesto, íntegro,
leal, mas ainda quer dizer, em sentidos secundários, o que brota bem, quem observa a
maneira criteriosa de proceder.
Improbidade administrativa, enfim, define-se como o comportamento que viola a
honestidade e a lealdade esperadas no trato da coisa púbica, seja na condição de agente
público ou de parceiro privado. Improbidade administrativa representa a desconsideração
da lealdade objetivamente assumida por quem lida com bens e poderes cujo titular último
é o povo.
Sujeitos. Definição de agente público (agentes políticos e outros) e demais
responsáveis jurídicos (convênio, consórcio, terceiro setor e parceiros privados).
Das tantas classificações que se apresentam na doutrina acerca dos agentes
públicos, uma delas, a de Celso Antônio Bandeira de Mello , cumpre com o nosso
propósito de identificarmos quem são os primeiros responsáveis por zelar pela coisa
pública.
Nos limites do quanto é necessário a este estudo pode-se dizer que os agentes
públicos são o gênero que se qualifica pelo desempenho de qualquer função estatal. Ou
dito de outro modo, enquanto um sujeito exerce uma função estatal ele deve ser
considerado agente público. Pouco importa se se encontra lotado junto à Administração
Direta ou na Administração Indireta (autarquias, fundações, empresas públicas e
sociedades de economia mista), ou mesmo se é um particular em colaboração com o
Estado em razão de específico vínculo travado (tal como acontece com os concessionários
e os permissionários de serviço público). Necessário, em última análise, à qualificação de
agente público esses dois requisitos: a) objetivo: a natureza estatal da atividade
desempenhada; b) subjetivo: a investidura nesta atividade.
Portanto, agentes públicos são o gênero no qual se encontram as seguintes
espécies:
a) Agentes políticos: são os titulares de cargos estruturais à organização política
do País, o vínculo que entretêm com o Estado é de natureza política, é dizer, não
profissional, submetem-se ao regime estatutário definido primordialmente pela própria
Constituição. São exemplos: Chefes do Executivo, Ministros e Secretários, Senadores,
Deputados e Vereadores.
b) Servidores estatais: são tanto os servidores públicos quanto os servidores de
pessoas governamentais com personalidade jurídica de direito privado (como é o caso
das empresas públicas e das sociedades de economia mista). O vínculo com o Estado tem
natureza profissional.
Os servidores públicos, por sua vez, compreendem duas espécies: b.1) servidores
titulares de cargos públicos; b.2) empregados públicos;
c) particulares em colaboração com o Poder Público: são todos os que firmam com
o Estado um vínculo jurídico do qual se legitima a atuação em sua representação, pouco
importa se por breve tempo ou em situação de estabilidade. São exemplos os requisitados a exercerem alguma atividade pública, tal como os mesários e os convocados ao serviço
militar, além de notários, tabeliães e registradores, e ainda as pessoas jurídicas de direito
privado que realizam o serviço público por delegação, o que é o caso dos concessionários
e permissionários de serviços públicos e dos que firmam uma parceria público-privada.
Ao se prestigiar o princípio republicano, e em especial a responsabilidade que
dele se decorre, o art. 1º da Lei 8.429/92 estendeu a qualificação do ato de improbidade
administrativa a qualquer agente público que aja contra o patrimônio público em seu
sentido amplo, o que se compreende, como acima foi visto, a moralidade administrativa
e outros valores consagrados constitucionalmente como indispensáveis ao interesse da
coletividade e respeito ao povo enquanto titular do poder.
O art. 2º da Lei 8.429/92 evidencia o sentido amplo de agente público nos termos
expostos acima de modo a abarcar não apenas os servidores estatais (titulares de cargos
públicos e empregos públicos), mas ainda os agentes públicos e mesmo os particulares
em colaboração com o Estado.
O art. 3° da Lei 8.429/92 expande a responsabilização a qualquer sujeito que
“(...) induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob
qualquer forma direta ou indireta (...)”, o que ainda abarca, além de alguém em simples
conluio com um agente público, qualquer outra pessoa que se valha de recursos públicos
(capital, bens ou a simples cessão de servidores), tal qual acontece com as entidades do
denominado Terceiro Setor.
Em suma, além dos agentes públicos qualquer outra pessoa, a qual título for, que
com o Estado estabeleça um vínculo no qual lhe seja disponibilizado recursos financeiros,
ou o uso privativo de bens públicos (a exemplo da concessão de uso de bem público), ou
mesmo servidores públicos lhe sejam cedidos (como pode acontecer com as Organizações
Sociais), pode responder por improbidade administrativa, mas desde que se encontre em
concurso (por induzir, concorrer ou se beneficiar do ato de improbidade administrativa)
com um agente público.
Portanto, convênios e consórcios, ou as entidades do denominado Terceiro Setor
(Organizações Sociais e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), em
qualquer relação jurídica com o Estado, apresente o vínculo um caráter negocial, ou seja,
considerado mero ajuste de interesses, pouco importa o título jurídico que qualifique a parceria, sempre que se fizer presente a fruição de recursos públicos, todos os envolvidos,
são igualmente responsáveis pela gestão dos bens e valores republicanos.
FONTE: CNJ
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